Reza a lenda que Frankie Knuckles, o pai da house music, disse uma vez que uma festa era como uma igreja: “quando o pregador começa a falar, todos na sala se tornam um só.” É assim que se sentiam os devotos em suas noites na Warehouse, clube onde a house music nasceu nos anos 1970.
Corta pra São Paulo, 2025. Peguei um Uber até a D-Edge, um dos clubes de música eletrônica mais famosos da cidade. O motorista aponta pra esquina da boate e me pergunta: “Ali é uma balada, né?” Falo que sim, e ele segue com outra pergunta: “É GLS?” Ri com o termo e dei de ombros, mas a resposta em geral seria não. E, especialmente naquele dia, era um não forte.
Na última quinta-feira, Renato Ratier — dono da D-Edge — postou um vídeo no Instagram em que ele e Baby do Brasil convidavam o público a um culto evangélico que seria realizado na balada. No reel, e em publicações subsequentes seguindo a reação negativa que ele teria recebido dos frequentadores da D-Edge, Ratier convidou curiosos de todas as religiões a irem ao evento gratuito.
A curiosidade matou o gato e não resisti a aparecer na famosa esquina da Barra Funda na segunda-feira, dia 10. Depois de pegar uma pequena fila (vida de balada!) e dar meu nome e e-mail na porta, entrei numa D-Edge com todas as luzes brancas acesas, a pista preenchida por cadeiras e uma banda posicionada logo à frente da cabine do DJ.
No palco improvisado, um membro da equipe de Ratier dizia que aquele era “um dos eventos mais marcantes da era cristã”, e convidou o dono da balada a assumir a palavra. Com letras soletrando “AMÉM” tatuadas nos dedos das duas mãos e uma camiseta que dizia “ALELUIA” nas costas, Ratier foi recebido com palmas.
Ele deu detalhes sobre sua conversão, que aconteceu há três anos, e garante que a fé o tornou um DJ melhor. Ratier abriu seu primeiro clube em 2000, mas fala que nada nunca o deu tanta satisfação quanto a religião. “Eu entreguei a minha vida, a vida da minha família e meus negócios a Jesus”.
Por um momento, nem pareceu que foi ali que tocaram nomes gigantes da música eletrônica como Jeff Mills, Solomun e Laurent Garnier. A iluminação dura era um desperdício da decoração interior e identidade visual do clube, criados pelo arquiteto carioca Muti Randolph, e que já deu as caras em listas de revistas internacionais de baladas mais bonitas no mundo — como contou Camilo Rocha no livro “Bate Estaca”. Os famosos painéis de lâmpadas LED, que tornam a casa tão reconhecível, estavam desligados.
Vou confessar uma coisa: eu mesma nunca fui à D-Edge para curtir a noite. Acho que é algo geracional — quando me mudei pra São Paulo, aos 19 anos, em 2015, já era outro tipo de festa eletrônica que pegava. Era a época das Vampire Haus, Mamba Negra, ODD e Voodoohop nas ruas, entre muitas outras. A gestão da prefeitura ainda era do Haddad.
Mas o que me lembro bem, porque vi e reportei na época, foram as rusgas entre os clubes mais tradicionais de São Paulo e essas festas. O próprio Renato Ratier era membro da ANEP — Associação da Noite e Entretenimento Paulista — e fez parte de uma pressão para que esses eventos dependessem de alvarás e autorizações, como os clubes dependiam. A reação foi que a Mamba Negra, após ter alguns de seus eventos barrados pela prefeitura de João Dória em maio de 2017, organizou um protesto com um trio elétrico pela Barra Funda que propositalmente passou na frente da D-Edge.
De lá pra cá, a cena de música eletrônica underground de São Paulo expandiu enormemente, mas continua enfrentando cercamentos. A música eletrônica comercial brasileira, por outro lado, está cada vez mais gigante e hegemônica. Ratier é filho de um homem do agronegócio e vem do centro-oeste brasileiro — que também é a origem de muitos dos DJs de mais sucesso no país hoje, como Alok, Vintage Culture e Illusionize. Também de DJ PV, o maior nome da música eletrônica gospel no país.
São dois mundos diferentes que disputam, simbólica e concretamente, por espaço na maior capital do Brasil. Mas os caminhos não podiam ser mais diferentes.
Li um comentário na página de música eletrônica em que eu originalmente vi a publicação sobre o culto que repudiava as críticas a Ratier pelo evento, evocando o “PLUR” (“paz, amor, união e respeito”), termo famoso na cultura raver.
Não sei se ele se aplica aqui. O culto que aconteceu nessa segunda-feira foi amplamente reportado: piauí e Folha fizeram matérias sobre o evento, destacando alguns dos absurdos que rolaram. Entre eles, que Baby do Brasil pediu pra que vítimas de abuso perdoassem seus abusadores, desdenhou de religiões de matriz africana e que um pastor contou a história de que foi “curado” da transgeneridade.
Na tarde de ontem, a D-Edge fez um post no Instagram com um texto em que Renato Ratier destaca que “algumas falas isoladas de convidados” iam contra o que ele acredita, e que justo essas foram repercutidas. Ainda destacou que o convidado que contou a história da cura trans foi chamado a falar sem seu consentimento. Ele afirma apoiar a comunidade LGBTQIAPN+.
No culto em si, nada em defesa desse grupo foi dito. Mas a ironia de um culto evangélico estar acontecendo num clube de música eletrônica, onde pessoas de todas as origens vão para curtir o som e usar drogas lícitas e ilícitas, estava clara para os organizadores. Baby do Brasil chegou a comentar que um parente a disse que “o demônio se levantaria” se eles realizassem um culto ali. “Ele vai se levantar pra cair de novo”, ela disse. Também disse que sua droga de escolha era “o espírito santo”.
Quando a banda de Baby tocou, tive que me esforçar pra sentir a comparação da qual falava Frankie Knuckles. As luzes piscavam e a plateia vibrava e fechava os olhos, como vemos numa rave. O restante, por outro lado, era bem diferente.
Simon Reynolds escreveu em “Energy Flash”: “A house music ofereceu um senso de comunhão e comunidade àqueles cuja sexualidade poderia tê-los afastado da religião organizada.” Não que a música eletrônica não possa ser hegemônica ou intolerante, mas é importante lembrar que estamos olhando para os desdobramentos recentes de uma forma de arte que parte da inclusão.
No post, Ratier deixa pra trás a promessa de fazer um evento daquele por mês na D-Edge, que tinha feito ao público durante o culto, e garante que não acontecerá de novo. Mas eu confesso que fiquei curiosa pra saber o que uma frequência de encontros evangélicos significaria para aquele espaço e seu dono, que se entranham cada vez mais no status quo.
Ótimo texto, Amanda. Vi a nota primeiro, e depois alguns relatos do "culto". Acho que a relação entre protestantismo, população negra e house music que você mobiliza faz muito sentido na realidade norte americana. Aqui o evangelismo do Ratier e da Baby é uma espécie de anti-house, e profundamente pertencente há uma classe média/alta.
O episódio em si já é lamentável, e piora ainda mais quando os envolvidos dão a cartada do "frase isolada tirada do contexto". Vida longa ao techno underground de verdade!